o Tchiloli em São Tomé

Em São Tomé e Príncipe existem dois teatros populares do ciclo das histórias de Carlos Magno, nomeadamente A Tragédia do Marquês de Mântua e do Imperador Carloto Magno, em São Tomé, e o Auto de Floripes *1, no Príncipe, apresentado tradicionalmente em 15 de Agosto, Dia de São Lourenço. Ambos os teatros são exemplos emblemáticos da crioulização cultural e do teatro sincrético. O primeiro, mais conhecido por tchiloli, é a manifestação cultural mais divulgada e melhor documentada do arquipélago pois, desde os anos de 1960, apareceram vários livros e trabalhos áudio-visuais sobre esse teatro popular, não apenas em português, mas também em inglês, francês e alemão. A palavra crioula tchiloli é sinónima de teatro e deriva etimologicamente do português tiroliro (pífaro), a flauta transversal que se toca durante o espectáculo *2

O tchiloli baseia-se num texto escrito por volta de 1540 por Baltazar Dias, um dramaturgo cego, madeirense da escola de Gil Vicente (1465-1536). O seu drama inspira-se em seis romances castelhanos que, por sua vez, derivam do ciclo carolíngio do século XI. Este teatro medieval conta a história de Dom Carloto, filho e herdeiro do imperador Carlos Magno que assassina o seu melhor amigo, Valdevinos, sobrinho do marquês de Mântua, durante uma caçada, porque se apaixonou por Sibila, a esposa de Valdevinos. O crime leva as duas famílias e os seus representantes a debaterem questões de lei, de justiça e de governação. Os temas chave desse drama são a traição e a igualdade perante a lei. O imperador é confrontado com o dilema de escolher entre a raison d’État, o interesse nacional, e o seu amor paternal. Finalmente, o seu filho é condenado à morte e executado na fortaleza imperial.

Os grupos do tchiloli, conhecidos na ilha por tragédias, têm cerca de trinta elementos cada um, e pertencem todos a uma determinada localidade de forros (assim se chamam os crioulos nativos de São Tomé). Dentro de certos limites dramatúrgicos, cada tragédia representa uma versão própria da peça. Conforme a tradição medieval, exclusivamente os homens representam todos os papéis, inclusivamente os de mulheres. Além disso, o mesmo actor amador representa sempre a mesma personagem. Os papéis, o guarda-roupa e os textos transmitem-se no seio das famílias.

Actualmente existem mais grupos de tchiloli em São Tomé do que antes da independência. Em 1969, havia cinco tragédias *3, em 1991 existiam nove grupos *4, entre 1995 e 1998 actuaram 15 grupos *5 e, segundo informações da Direcção Nacional da Cultura, em 2007 permaneciam 12 tragédias.

Geralmente um espectáculo tem a duração de cerca de seis horas e é apresentado em terra batida num quintal ou numa praça pública, ao ar livre, durante a gravana (estação seca), sobretudo por ocasião das festas anuais dos santos católicos das vilas e de outras festividades. A influência africana, em termos da noção de tempo, estendeu as poucas páginas do texto original para representações bem mais longas.

O palco rectangular, aberto pode ser visto de todos os lados. Os espectadores participam activamente no espectáculo através de comentários durante as várias cenas do teatro. A um lado do palco ergue-se a corte alta sobre estacas de madeira, coberta com ramos de palmeira, representando o palácio imperial. No lado oposto, no chão, a palhota feita de ramos verdes representa a corte baixa da família enlutada dos Mântua. Durante o espectáculo, um pequeno caixão colocado numa cadeira no meio do palco simboliza o Valdevinos morto.

A maior parte dos versos de sete sílabas de B. Dias são utilizados sem quaisquer alterações, contudo, textos adicionais de prosa em português moderno foram integrados na representação. Estes dominam as partes relativas à investigação criminal e aos procedimentos legais. Em contraste com o texto original, estes textos modernos são constantemente adoptados e improvisados pelos actores.

Enquanto o argumento da peça assume a sua importância, a dança, a pantomima e a música não são menos relevantes no contexto do espectáculo. Todo o tchiloli é uma mistura de dança e pantomima. Uma orquestra composta de tambores de diferentes tamanhos, um sino, flautas de bambu e sucalos (chocalhos) – instrumento local feito por um pequeno cesto contendo sementes – fornecem a música que acompanha os actores dançando de um lado para o outro. A música é caracterizadamente monótona, uma única melodia é retomada.

*1. O Auto de Floripes é também representado anualmente na Vila das Neves, Viana de Castelo, em 5 de Agosto.

*2. Beja 1994.

*3. Reis: 1969.

*4. Neves 1998:11.

*5. Valverde 2000:16.

__________________________________________________________________________________________________________________

Gerhard Seibert
Centro de Estudos Internacionais (CEI)
ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)